quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Morte, vida e arte

Navegando pela internet um dia desses me deparei com um caso curioso. Jean Stevens, uma idosa de 91 anos de Wyalusing, na Pensilvânia, surpreendeu sua cidade e, posteriormente, o mundo com sua maneira “diferente” de se relacionar com a morte. A senhora mantinha e cuidava, em casa, dos cadáveres de seu marido, morto em 1999, e de sua irmã gêmea, morta em 2009. Ela disse para os jornalistas que uma de suas maiores preocupações era o medo de não acontecer nada após a morte. “É esse o grande final?”, ela se questionava.

Refletindo sobre o assunto cheguei a conclusão de que a fala e os temores de Jean não são uma novidade. Eles são identificados pela historiografia desde os primórdios dos tempos, a começar pelas pinturas rupestres. A partir do momento em que o homem detectou essa ausência, causada pela morte e pelo deixar de ser, iniciaram-se as tentativas de perpetuação. E o que pode ser observado é que a morte, ou qualquer outra ruptura, sempre acaba produzindo “nova vida”, novos começos. Nesse contexto, nasceram as primeiras manifestações artísticas, a partir da falta, do vazio.

Essa senhora norte-americana tentou preencher esse vazio da morte de seus entes na contra-mão do que os antigos egípcios e gregos faziam e do que é aceitável em qualquer sociedade atual. Enquanto antigas civilizações (e até algumas modernas) fabricavam o duplo, uma imagem para representar o cadáver, Jean Stevens surpreendeu ao “trazer de volta à vida” os próprios corpos, em decomposição, de seus familiares. Essas decomposição e feiúra quase nunca são aceitáveis, considerando que não representam a vida. No filmes Partidas (2008), de Yojiro Takita, essa necessidade pode ser observada no cuidado, delicadeza e dedicação tidos pelos personagens para com os corpos, afim de que eles se assemelhassem à como a pessoa era quando viva. Aliás, essa tentativa vai além, é como se esse momento devesse ser o mais belo para que, assim como faziam os faraós, essa pessoa entrasse na outra fase da existência (o pós-morte) esteticamente melhor do que nunca.

Regis Debray fala em seu texto Nascimento pela morte das inúmeras tentativas do homem de lidar com o final da vida física ao longo do tempo. Ele afirma que os grandes monumentos funerários são uma forma de alertar os vivos sobre a morte, sobre a fugacidade da vida: “a advertência de um lembra-te”, (pág. 28). Ao mesmo tempo, muitos desses monumentos, como efígies e mausoléus, tentam recompor o corpo. Na Idade Média, por exemplo, os cavaleiros e reis tinham, em suas câmaras mortuárias, um duplo esculpido no topo dos túmulos, que representava o morto. Esses monumentos permanecem até hoje em vários pontos no mundo, no Brasil inclusive, perpetuando na memória dos que vivem a existência dos que já foram. Para o autor, é “um duplo do morto para mantê-lo vivo”, (pág. 29). Na Catedral de São Pedro de Alcântara, na cidade fluminense de Petrópolis, podemos encontrar um exemplo. Lá, onde está o mausoléu imperial brasileiro, ficam as efígies do imperador D. Pedro II e da imperatriz Thereza Cristina, além de outros membros da família real. Tudo, na câmara mortuária, é feito delicadamente para “honrar” a vida do antigo imperador, até as janelas, que lhe fazem homenagem em seus vitrais.

A partir disso, desse apelo ao belo, da criação da imagem esteticamente agradável, do duplo, surge a arte. Como Debray explica, “nós opomos à decomposição da morte à recomposição pela imagem”, (pág. 30). E no promover dessa imagem, encontramos o que será, eventualmente, considerado como manifestações artísticas.

A magia também aparece nesse momento de criação da imagem e do duplo e somente quando ela “desaparecer” essas imagens serão consideradas arte. O invisível sempre atraiu o homem e até hoje gera dúvidas. As imagens, então, podem ser consideradas a forma visível de explicar aquilo que não pode ser concretizado. Na Bíblia vemos um caso curioso desse comportamento humano. Quando os hebreus estavam no deserto após a fuga do Egito, Deus falava com o povo através de Moisés, o que fazia com ele ficasse por muito tempo afastado. Em uma dessas ocasiões em que ele esteve fora, o povo construiu a imagem de um bezerro de ouro, representando Apis, um conhecido deus egípcio. Apis representava força e fertilidade, porém, mais ainda, para o povo ele era o palpável, o real, a materialização do sagrado. Os hebreus adoravam a imagem como se ela fosse poderosa, como se ela estivesse integrada àquele deus que ela representava. Assim também é a lógica da imagem associada à magia. Somente quando essa associação é quebrada que a visão artística surge.

Voltando à questão dos corpos, uma exposição tem causado polêmica ao se estreitar com a morte. A Bodies The Exhibition atrai, desde 2005, milhões de pessoas ao redor do mundo para conhecerem melhor o corpo humano. Nela os visitantes podem ver cadáveres de chineses que passaram pela verdadeira fonte da juventude, talvez o sonho de consumo de mais da metade da população norte-americana (e, porque não dizer, de boa parte da brasileira também). Por meio de um processo de conservação com silicone, os corpos dissecados estão à mostra como bonecos, em poses atléticas e criativas. É quase como se o duplo tivesse deixado de existir e os antigos egípcios tivessem encontrado uma nova forma de manter seus mortos expostos à dias, sem a necessidade da imagem. O morto é a imagem. O que conduz com uma sociedade em que as pessoas reais se escondem atrás de quilos de maquiagem, plásticas e aperfeiçoamentos cirúrgicos, para parecerem esteticamente mais agradáveis do que realmente são.

Além das questões mais óbvias, pontuais, podemos promover uma discussão mais geral, macroestrutural, de algo também promovido pela morte. Como dito anteriormente, toda ruptura gera algo novo. Para todo fim, um novo começo. O filme de Yojiro Takita ilustra bem isso. O enredo é marcado por pequenas rupturas ou pequenas mortes. A começar pela dissolução da orquestra, a vida de Daigo Kobayashi, personagem principal, sofre uma série de mudanças que partem do vazio provocado por outras. É nessa eterna busca por preenchimento que ele descobre como levar sua vida. De maneira muito sensível e silenciosa, o diretor mostra a eterna peleja humana, com conflitos, problemas e superações, aproximando dois extremos que são vida e morte, fazendo-os andar tão próximos. Seja a morte real, da carne, ou a figurada, dos sonhos, as quebras no filme são sempre seguidas pelo novo. O polvo, os salmões, os amigos, os trabalhos, mas a principal mudança ele guarda para o final, quando com uma pequena pedra o diretor nos indica a maior de todas as rupturas para Daigo. É por meio dessa última morte, a mais significativa, que ele pode parar e “recomeçar a viver”.

Diante de tudo isso, acredito que, no final, um clichê é expandido. Já que percebe-se que não só a morte faz parte da vida, mas como também a vida (se inspira/transcende/descende) faz parte da morte.

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* Mil perdões pelos erros de diagramação. Eu e o Blogger discordamos em alguns quesitos que eu mesma não compreendo!

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